A criança que eu não
fui aflora agora, após quase meio século de vida.
Eu acreditei que
pudesse abafá-la para todo o sempre e nunca levei a sério todos os seus
veementes apelos para ressurgir e manifestar-se.
Ocorre que ultimamente ando esbarrando nela a todo instante,
do jeitinho que a deixei há quarenta e tantos anos atrás: extremamente tímida,
sobressaltada, sem defesas para um mundo que lhe parecia por demais hostil e
complicado.
De família numerosa, meus assoberbados pais não tinham tempo
para entender a minha interna tragédia, tampouco para resgatarem-me dos dramas
que a minha criança resolveu sozinha e resolveu completamente
errado.
Incorporei todos os rótulos que me deram nas minhas primeiras
tentativas de convivência entre os humanos: desajeitada, limitada, mela-festa,
esquisita.
Então a minha criança entendeu que para merecer fazer parte da
vida e receber um mínimo de carinho e aceitação, era preciso fazer coisas
heróicas e grandiosas. Em cima desta idéia pautei toda a minha
existência.
Tenho que dar um salto aqui - não interessa narrar os meus
grandiosos e heróicos feitos - mas é preciso ressaltar sim, os desumanos
sacrifícios despendidos nesta empreitada e para onde eles me levaram: depressões
profundas e síndrome do pânico cujas sequelas ainda hoje se fazem
sentir.
Às vezes me pergunto porque o "Supremo" não intercedeu por mim
naquela época, mandando-me uma angélica criatura para lembrar-me que nada
daquilo era preciso e que a despeito das minhas esquisitices, eu era merecedora
de amor respeito e aceitação?
Esta narrativa fica pela metade, pois só agora começo a dar-me
conta do tamanho e da gravidade do equívoco. Só agora estou disposta a romper a muralha de aço entre o meu eu adulto (e
mal resolvido) e aquela criança que não me permiti ser e que agora explode à
minha revelia, não aceitando mais o porão escuro onde a trancafiei por tantos
anos.
Espero que haja tempo para resgatá-la e deixá-la ser feliz pela
primeira vez na vida, sem que nada ela tenha que fazer de sobre-humano, de
heróico ou grandioso, de notório ou
relevante.
Perdoa-me, minha criança!
Eu joguei duro demais com você por ignorância.
Liberto-a agora!
Esteja feliz!
Esteja em paz!
Perdoa-me, minha criança!
Eu joguei duro demais com você por ignorância.
Liberto-a agora!
Esteja feliz!
Esteja em paz!
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